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Tasha e Tracie

A moda muda quando a sociedade muda

Tasha e Tracie Okereke

11/06/2019 23h01

A gente cresceu assistindo aos vídeos do Prince com nosso pai, que é um grande fã e sempre contava histórias de rivalidade que ele e os amigos tinham com os fãs de Michael Jackson. Ele contava que usava um cabelo excêntrico, "fashion", calça de cintura altíssima e botas plataforma. Lembra que o clima ficava tenso quando se discutia quem era o melhor: Michael ou Prince. Meu pai é fã dos dois, mas dizia que na época era do lado do Prince que ele ficava. Nós ficávamos admiradas com as roupas, os clipes, as mulheres, o jeito que ele dançava, a música… tudo mexia muito com nossa cabeça! Mas também ficávamos nos questionando como o meu pai, um nigeriano bem machista que vem de uma cidade e cultura não tão aberta à homoafetividade, era super fã de um artista andrógeno e se via representado por ele?

Prince era um cara genioso, que aos 17 anos, ainda sem ter lançado nenhum disco, recusou a produção de Maurice White (produtor do Earth, Wind and Fire) para o seu álbum porque ele queria fazer tudo! E a gente se identifica muito! Somos meio obcecadas por ele e toda sua arte, e o fato de ele ser geminiano — como nós, aliás —, nos aproxima mais ainda. Mas a moda nele era algo que nos intrigava e inspirava demais. Meu pai é uma das pessoas com melhor senso para moda que já conhecemos, e o fato de ele, tão "macho", ter sido super influenciado pelo Prince é a prova de que Prince redefiniu o conceito de masculinidade negra.

Sim, havia o David Bowie, o Elton John, todos eles eram andrógenos, mas na cultura negra, em que o conceito de masculinidade atual é bem tóxico e baseado em construções sociais feitas em cima de mitos que resultam em estereótipos, o único homem negro que até então tinha flertado com a feminilidade era o Little Richard. Mas o Prince foi muito além, desafiando as barreiras de gênero, sexualidade, masculinidade e ainda sim com uma imagem de galã, desejado pelas mulheres… um "playa" que as fãs enlouqueciam quando viam! Como dizem por aí, ele era um cara de salto alto que podia roubar sua namorada! Na música "Controversy" ele fala:

"Eu simplesmente não consigo acreditar na coisas que as pessoas dizem

Controverso!

Eu sou preto ou sou branco, sou hétero ou sou gay?

Controverso!

(…) Eu não consigo entender a curiosidade humana

O que é bom pra você, é o que você queria que eu fosse?

Se eu acredito em Deus, se eu acredito em mim? Algumas pessoas querem morrer pra então elas poderem ser livres…

Controverso!"

Quando questionado sobre sexualidade, ele dizia que era algo espiritual, tanto que quando mudou seu nome para um símbolo chamado "símbolo do amor", o tal era a junção dos ícones de masculino e feminino.

Há um tempo atrás, nós descobrimos o "#carefreeblackboy movement" (que numa tradução livre significa "homem negro sem preocupações"). Antes, esse termo era usado por mulheres negras nas redes sociais, que postavam fotos com seus cabelos coloridos, coroas de flores e imagens leves e divertidas. A ideia era mostrá-las confortáveis em suas peles e corpos, com a intenção de "protestar" contra o estereótipo da mulher negra agressiva e brava. Na sequência, os homens negros começaram a usar esse termo para protestar contra os mitos que construíram estereótipos sobre homens negros e ajudaram a perpetuar conceitos de masculinidade toxica.

Com certeza você deve ter visto fotos de homens negros com flores na barba e com expressões calmas e bonitas, O movimento já tem mais de três anos e tem como "muso" o Jaden Smith, que constantemente desafia esterótipos de masculinidade com sua imagem. Ele basicamente mostra que está se expressando com a moda e ponto!

Se a mulher negra é representada na mídia como Jezabel, Black Lady ou negra raivosa, o homem negro é representado como abusivo, ladrão, vagabundo, preguiçoso e até estuprador. E essa ideia não foi formada recentemente. Um exemplo disso é o filme "Birth of a Nation" (O Nascimento de uma Nação), de 1915. O filme mostra a Ku Klux Klan como heróis e retrata homens negros — com atores usando "black face" — como predadores de mulheres brancas e preguiçosos. "O Nascimento", inclusive, mostrava a lendária cena da cruz pegando fogo, que reviveu e inspirou a Ku Klux Klan a voltar à atividade.

Havia também o racismo científico. O médico James Marion Sims (1813-1883), considerado por muitos o "pai da ginecologia moderna", realizava experiências em negras escravizadas nos EUA. Segundo ele, "os africanos tinham uma tolerância fisiológica incomum para a dor, que era desconhecida pelos brancos". As mulheres negras eram cobaias e, nessas experiências criminosas, não recebiam sequer anestesia e antissépticos, o que levou inúmeras à morte. No Brasil, até hoje pessoas negras são mais expostas à violência médica — inclusive, há estudos que apontam que mulheres negras e pardas recebem menos cuidados, caso da anestesia, e são mais vulneráveis a sofrerem violência obstétrica (mas isso é assunto para outro texto).

No caso do homem negro, os estereótipos tem a intenção desumanizá-lo. Ele não é ensinado a lidar com os seus sentimentos. Pensa que não lhe é permitido mostrar qualquer tipo de fragilidade. Tudo começa na infância, quando rala o joelho e ouve de algum tio falando "homem não chora", e se estende até  a juventude, com os comentários do tipo "isso não é coisa de negão". Isso fica dentro dele e atinge nós, mulheres, porque o homem com o qual lidamos é resultado dessa  contrução social. A agressividade está ligada a isso também e  mantém nossos homens em uma caixa limitada e exploradora. Tem que ter força, tem que ter disposição e não ter fragilidade, tem que ser o supra sumo da masculinidade. Isso é cruel, desumano e é responsabilidade de TODOS humanizar corpos negros. Precisamos desmistificar o conceito de que pessoas negras são mais fortes e resistentes. Isso nos atinge de todas as formas possíveis e resulta até em violência e negligência médica.

Racionais Mcs:

"diz que homem não chora, tá bom falou, não vai pra grupo irmão, jesus chorou!"

O legal é que hoje vemos mundialmente rappers e artistas negros falando sobre sensibilidade e se desprendendo do código de vestimenta e comportamento tradicionais do hip hop. Eles trazem várias narrativas, e para nós isso é o sinal de que as coisas estão mudando internamente… Trappers Emos, rappers sensíveis e nerds… Às vezes, parece até uma volta ao marco zero do hip hop, época do Grandmaster Flash and the Furious Five, onde os caras se inspiravam no Rick James, vestiam colar de pérolas, croppeds, botas e chapéus.

Vemos também uma grande tendência de homens se reunindo para discutir masculinidades, principalmente homens negros, e é extremamente importante que movimentos assim tragam discussões sobre essas pautas. Óbvio que não adianta nada você pintar a unha, usar cropped e tirar foto com flor na barba e ao mesmo tempo ser um homem machista na vida real, mas o ponto que queremos chegar é: a imagem é o que chega primeiro, a imagem é a primeira mensagem e pode ser usada como arma para questionar e desmistificar, pode ser usada como protesto e quebra de estereótipos! A moda muda quando a sociedade muda.

Sobre as autoras

“QUEREMOS FAZER AS PESSOAS TEREM A CONSCIÊNCIA DE QUE ELAS PODEM FAZER TUDO”Tasha (@tashaokereke) e Tracie Okereke (@tracieokereke), 23, paulistanas, gêmeas. São DJs, estilistas, diretoras de arte, produtoras culturais, blogueiras e ativistas periféricas. Trabalham em prol da autonomia e da autoestima do jovem favelado. À frente do projeto Expensive $hit suas armas são a moda, a música, a arte, a história, a cultura, o conhecimento e a internet. Dividem e espalham informação para os seus, abordando assuntos urgentes. Site: tashaetracie.com.br

Sobre o blog

Neste espaço vamos ter todo tipo de reflexão que topar com a nossa humanidade — de acordo com a perspectiva das autoras, é claro.