Hip hop nacional se cobre de prata para ostentar a cultura ancestral negra
Muita coisa mudou na cultura preta, mas as jóias ainda permanecem. Desde milhares de anos atrás até o rapper Quavo, que carregou mais de US$ 1 milhão no pescoço, elas sempre representaram status, nobreza, beleza e prosperidade.
Quando vamos para o universo do hip hop, então, as jóias são praticamente uma cultura dentro de outra cultura! Chamadas de bling, essas peças representam uma herança com muitos significados sociais, políticos e religiosos. Elas fazem dos rappers uma espécie de faraós modernos, com os ornamentos declarando a ancestralidade.
Nos anos 1970, Kurtis Blow fez o primeiro álbum de hip hop a ganhar o disco de ouro. Na capa, fazia muito sentido ele estar com o pescoço cheio de ouro. A partir daí, os enfeites dos rappers só aumentaram…
Anéis em todos os dedos e voltas e voltas de correntes faziam parte do visual daquele momento. Eric B. & Rakim, na capa do disco "Paid in Full", usaram correntes que custavam aproximadamente US$ 100 mil cada uma!
Esse sucesso fez com que o hip hop, apesar de um ainda ser um ritmo relativamente novo, se tornasse um dos estilos mais influentes — e assim permanecesse. Claro que, nascido dentro da cultura afro-americana, seus pilares foram exportados para o mundo pelas vozes e ideias dos artistas dos EUA. Mas o Brasil já construiu sua própria narrativa e segue a renová-la, com novidades e estéticas ligadas à história brasileira, o que permite a formação que uma nova perspectiva também!
Prefiro não usar ouro e não ser falso em nada
Djonga
Nos anos 1990 e 2000, os fãs de rap no Brasil eram bem mais americanizados, seguindo o visual e roupas dos ídolos nos clipes, que obedeciam a uma estética do gueto nos EUA. Atualmente, o rap BR está menos Bronx e mais favela. Mais próximo do funk, e é muito bom ver duas culturas de favela com o mesmo fundamento e se enxergando uma na outra. A cena nacional está sendo bem influenciada por Djonga e Baco, que rimam sobre herança negra e poder. E, claro, também usam adornos pesados de prata, citando o metal em várias músicas.
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Virei imortal ao aceitar sua pele é prata
Virei imortal ao aceitar minha pele é prata…
Baco
Tive essa brisa ao descobrir que a prata era um dos metais mais puros. Só que o ouro é mais raro. São a mesma coisa, só muda a cor. E a questão dos negros no Brasil é a mesma coisa. São maioria
Baco, para a revista "Rolling Stone"
Lá fora, os joalheiros têm tanto prestígio quanto os rappers. Angel City Jewellers e Ben Baller/IF&CO são as referências nos EUA. Aqui, temos Ago Jóias, Gustavo Isgroi, Castella Jóias, Joalheria Flor de Liz , Brazil Grillz e Ita Jóias, entre outros. No meio dessa turma há um menino da ZL de São Paulo: Marcelo Maia, da marca King Maia, que firmou seu nome com o Instagram. Ele já trabalhou com vários MCs e trocou uma ideia com a gente.
Tasha e Tracie: As redes sociais te ajudaram no seu negócio? Como?
Maia: Ajudaram! No começo era meio que um hobby. Antes eu só postava no meu Instagram pessoal. Aí, resolvi profissionalizar a parada e fazer um só da marca. A rede social ajuda porque você fica muito mais próximo do cliente. E não é só a molecada, que é grande parte do meu público, mas você fica mais próximo de formadores de opinião, o pessoal do rap. Tem umas pessoas que seguem minha marca que eu desacredito. Eu coloquei tudo no Instagram. Demorou bastante para eu ter um site de e-commerce, porque eu não queria isso. Chegou uma hora que eu já tinha peças de linha. Mas até hoje os [blings] personalizados eu faço só pelo Instagram e WhatsApp, porque você cria um laço maior com quem compra.
Qual rapper foi seu primeiro cliente?
Foi o Ogi. Depois disso vieram Bloco Sete, Djonga, Ceia Ent., Froid, Mob79, Baco, Menestrel. Isso fora os rappers que não estão no mainstream, mas que compram minhas peças pelo Brasil todo. É muito da hora caras como o Djonga ou o Baco, que são formadores de opinião, te escolherem pra fazer uma peça, porque eu escuto o som deles pra trabalhar. Hoje consigo lidar melhor com isso, antes eu ficava meio deslumbrado. Depois que o Menestrel citou a King Maia num som, a marca tomou outra proporção.
Como você começou?
Comecei com o meu pai, como "profissão de berço". Ourivesaria tem um pouco disso, né, passa de pai para filho. Mas eu comecei a botar identidade nas peças quando eu comecei a criá-las. Meu pai me ensinou muita coisa, mas eu fui para um lado em que eu tive que ser mais autodidata. Ele não criava tanto, não modelava. Então tive que aprender a modelar na cera e fui colocando a minha identidade nas peças.
O começo de tudo
Como já falamos, o legado que Maia e outros artistas carregam dentro da cultura hip hop vem de muito tempo. Os metais preciosos sempre foram emblemáticos na cultura negra. Em várias das antigas sociedades africanas, o ferreiro — ou ourives — era mais do que um prestador de serviço: era quase um mago, um artista, alguém que era tratado como se tivesse recebido um dom dos deuses!
Os tuaregues preferem usar prata porque é o metal do profeta. Eles usam suas jóias como moeda de troca por comida e tecidos — além disso, os anéis passam entre homens e mulheres como um sinal de afeto.
No antigo Egito, a prata, segundo historiadores, chegou a ter um valor similar ao do outro, e muitas tumbas e peças eram produzidas com o "metal branco", nome dado pelos egípcios a prata.
Nos séculos de colonização europeia, a região de Gana era conhecida como a "costa do ouro". Os membros das famílias reais africanas, além de usarem lindos e extravagantes colares e pulseiras, trançavam o cabelo com ouro, que também era usado como adorno para a cabeça. Agora ninguém se vestia de dourado como Mansa Musa, rei de Mali no século 14 e que é reconhecido como o homem mais rico QUE JÁ EXISTIU. Especialistas consideram impossível mensurar com precisão sua riqueza, mas algumas histórias dão a dimensão do caixa de Musa — em uma viagem ao Cairo, ele doou tanto ouro aos locais que gerou uma crise inflacionária na cidade.
No Brasil, nos séculos da escravidão, os conhecimentos específicos de cada povo serviam como um dos critérios no comércio de escravos. Pertencentes ao grupo etnolinguístico bantu, os negros de Congo e Angola que ficavam à venda no Rio de Janeiro eram conhecidos como "o povo que detinha o segredo da metalurgia" — foram eles que produziram ferramentas como enxadas e foices e que, em Minas Gerais, criaram os primeiros fornos de fundir ferro do estado. Na virada do século 17 para o 18, aumentou o número de escravos que vinham de Gana, porque os portugueses se ligaram que esses povos sabiam trabalhar o ouro, eram mineradores, faziam jóias, sabiam buscar o metal….
Nos séculos 18 e 19 surgiram na Bahia as jóias de crioulas e os balagandans que marcaram a ourivesaria brasileira. Essas peças eram usadas pelas "negras de ganho" — mulheres que no período colonial e no Império realizavam tarefas, vendiam temperos, verduras, etc e repassavam parte do valor recebido para os senhores, enquanto a outra parte elas normalmente tentavam guardar para comprar sua alforria e suas próprias jóias.
Essas mulheres usavam correntões, pulseiras, brincos, abotoaduras e pencas de balagandans na cintura, com vários amuletos de proteção e peças religiosas. Maiores e ocas por dentro, algumas peças feitas de ouro eram usadas em grande quantidade em dias de festa.
Essa ligação dos ferreiros ancestrais ao conceito usado por Baco e outros integrantes da cena do hip hop nacional mostra que estamos mais conectados com as nossas raízes do que podemos imaginar! Quanto mais soubermos sobre o que historicamente ouvimos, vestimos, comemos e falamos, mais saberemos sobre nós, um povo que teve a identidade sequestrada!
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